sábado, 10 de outubro de 2015

Anotações a um amigo que parte

Reynaldo Fonseca

Para ler ouvindo Milton e Carminho 

Viver sustentando a carne e os ossos. Esse frio colossal que vem do abismo espantado, do fugaz instante entre o que se quis dizer e o que foi dito, asa de pássaro riscando o céu.

A verdade é que não há remédio para os dias cansados, mas um copo de conhaque sempre pode lareirar as noites frias. Dos encantos do álcool: embriaguez colorida, fortuna do velho espírito, a pedra esquecida do peso.

Não te contei dos murmúrios castellanos. Semelhanças. Invenções. Tampouco tive tempo de te falar dos segredos do mar – furiosa, a onda veio antes! –, esses miúdos que aqui e acolá consigo catar na areia do tempo.

O tempo... O tempo que há, e morre enquanto o afirmo. O mesmo que te viu nascer, e que transbordou em taças de vinho madrugadas adentro, que encharcou de bizarras figuras os versos escritos à espera do poema, lançou garras em meu sexo, mordeu o músculo, e morreu sem precisão.

Precisão. Dizem de Pessoa, sem saber. Imprecisão: isso é a vida em todos os seus caminhos. E sob a tenaz sombra, riem as fúrias. Agora mesmo, veja: gargalham minhas vilanias, antecedendo, no riso histérico, os pecados pelos quais expiarei.

Sentirei culpa? Ah, essa nódoa cristã! Quanto açoite em nome dela. Tantos que mesmo sendo eu, levianamente, desgarrada do bando sinto estalar entre as tatuagens das costas a invisível vergasta enquanto um novo fantasma sussurra: “acontece que tuas mãos eram pequenas e suaves. E tua voz, anímico retrato. Ouço-a agora mesmo, um estribilho acompanhando a partida”.

Partes. Partiste. E partirás sempre.

Partir de onde nunca se esteve. Imprecisões. Isso é a vida em todos os seus caminhos. 


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