domingo, 28 de fevereiro de 2016

O afago do mingau

Robert Doisneau

Para ler ouvindo As palavras

As palavras ressoam e provocam, sem permissão, a dança da menina. E ela gira, gira, salta entre sorrisos e crenças distribuindo ao vento a fugaz alegria. Tão ingênuos e famintos seus olhos! Puxo-a docemente pela mão (sinto tristeza ao vê-la entre as mandingas do amor) e tento tirar de seu rosto, agora tomado pela criação, o riso aberto da alma:

– Não se distraia, menina! O mundo é duro, o homem é duro.

Penso em dizer-lhe, amorosamente, de como anda volátil a vida. Mas são tão frágeis e ao mesmo tempo fortes seus músculos, sobretudo o pequeno e rubro coração, que me retraio envergonhada.

Há tempos fizemos um trato. A ela coube a leveza da brisa; a mim o peso do concreto, essa massa cinza e desconfiada das coisas. Mas quem, hoje, pode se fiar no bigode inexistente? (Ah, tantas e tantas vezes ela me deixou sem chão, destruindo, com uma única palavra, o modesto edifício que ergui à sombra de seus rodopios!).

Sei que é sem maldade, mas o fato é que a menina zomba de minhas inúteis tentativas de lhe educar para a vida entre os homens: e eu, ainda sentindo na face o roçar da ponta de seu vestido azul de bolinhas, caio cansada e muda em suas trampas.

– E se eu te der um chocolate? Queres mingau, farinha láctea, leite em pó com nescau?

Corro à cozinha e busco aveia, açúcar, leite, canela. O cheiro morno toma conta da casa. Gosto das borbulhas e do movimento rápido e preciso com a colher de pau: vigiar o fundo da panela. Deixo, então, esse calor da infância tomar conta de mim enquanto penso (mas silencio):

– Menina, menina! Aquieta teu coração, que a vida corre solta e veloz. Não há mais tempo para tuas acrobacias na Monareta lilás.

O mingau tem o efeito de um abraço ou cafuné de avó. O mingau até hoje me acalma.

3 comentários:

Marilia Kubota disse...

Somos meninas para sempre.

Vássia Silveira disse...

... isso dá um trabalho, Marilia!

Jalul disse...

Uma pérola!
Sejamos sempre meninas. Dá trabalho, mas...